À espera das cerejeiras

De Nagoia (Japão)

A dias da esperada temporada de cerejeiras, tímidas flores já despontam nos jardins do castelo de Nagoia, na província de Aichi, no Japão. Sob a chuva fina de fins de fevereiro, visitantes, muitos mascarados, fotografam as árvores em close-up para captar as pequenas pétalas de sakura.

Quase no fim deste inverno, um dos mais amenos dos últimos anos, sakuras vão colorir o arquipélago antes do esperado. Segundo o último boletim da Japan Meteorological Corporation, as cerejeiras vão desabrochar na capital, Tóquio, durante onze dias a partir de 15 de março. Em Hiroshima, as florações estão previstas para 19 de março; em Kagoshima, ao sul, 31 de março; em Sapporo, ao norte, 30 de abril.

É a época do “hanami”, a arte de admirar as flores, uma tradição secular no Japão. Em tese, é a singela contemplação das cores das cerejeiras em flor, em diferentes tons de pink e branco. Em tempos instagramáveis, inclui festivais que movimentam mais de 60 milhões de viajantes, japoneses e estrangeiros, ávidos por fotos nos parques floridos, iluminados e tomados por piqueniques.

Entretanto, os maiores festivais de hanami, como os tradicionais de Tóquio e Osaka, foram cancelados neste ano a fim de evitar aglomerações –sim, devido ao surto do novo coronavírus, assunto que segue dominando a imprensa japonesa.

Hanami é a arte de admirar as flores de cerejeiras, uma tradição secular no Japão (Pavlo Klein/Unsplash)

Além de colégios parados, companhias priorizando home office, jogos de futebol e beisebol alterados, Tokyo Disney e Universal Studios Japan temporariamente fechados, shows e eventos como Anime Japan e Tokyo Fashion Week foram cancelados de última hora. A vida parece em suspenso, em suspense.

O clima de incerteza se agrava com as declarações desencontradas das autoridades olímpicas. Seiko Hashimoto, ministra de Tóquio-2020, acenou a possibilidade de adiamento dos Jogos. Dick Pound, integrante canadense do Comitê Olímpico Internacional, idem. A cada deslize, o comitê martela o compromisso de sediar o torneio nas datas marcadas, 24 de julho para a Olimpíada, 25 de agosto, a Paraolimpíada.

“Isso quer dizer que a competição mais celebrada do mundo, mais ansiada pelos atletas e de maior visibilidade planetária corre o risco de ser desfigurada por uma força microscópica, destituída de consciência ou intenção. Que mundo curioso esse onde os extremos se testam em seus pontos mais fracos”, escreveu a colunista Katia Rubio nesta Folha.

Tradicionais festivais de hanami, como os de Tóquio e Osaka, foram cancelados (Kazuend/Unsplash)
Época das cerejeiras simboliza recomeços no Japão (Kazuend/Unsplash)

Não é só a Olimpíada, o glorioso encontro esportivo que simboliza a paz entre as nações, que corre o risco de ser desfigurada no Japão. É o dia a dia, a ida ao colégio ou ao mercado, o trivial que se tornou incerto, imprevisível – como as cerejeiras, maior símbolo da efemeridade deste lado do mundo.

“As sakuras também ensinam sobre a imprevisibilidade da vida. As flores de cerejeira desabrocham uma vez por ano, na primavera, e dura apenas uma semana. Os botões que se abrem vão do branco a várias tonalidades de rosa. O vento faz com que as pétalas voem pelo ar, formando uma espécie de neblina rosada; sob essa chuva, pisa-se sobre um chão que me faz lembrar de carnavais passados — o confete produzido pela própria natureza”, descreveu a jornalista Paula Carvalho, na revista Quatro cinco um.

Apesar da simbologia sublime das sakuras, os ares poéticos colidem com o vírus da vez. Também associadas a recomeços, já que surgem na época de início do ano letivo e do ano fiscal japonês (1º de abril), as flores encontram um calendário confuso neste ano.

“O hanami de 2020 ainda vai acontecer?!”, indaga-se aflitivamente em diversos posts na internet. Sim: com ou sem luzes festivas, as flores estarão lá para pura e simples contemplação. Elas sempre colorem o país nessa época, mesmo que tudo ao redor esteja desmoronando. Festivais foram cancelados; a primavera, não.

No filme “The Tsunami and the Cherry Blossom” (2011), indicado ao Oscar de melhor documentário em curta-metragem, um dos sobreviventes da onda gigante que atingiu Fukushima observa as árvores que floresceram pouco tempo depois da catástrofe. “Se as flores estão se aguentando, nós também precisamos aguentar”, diz.